quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Mais uma dose

Cuidava de si para os outros
Olhava-se através de olhos estranhos
E extremamente críticos
Quando não sedutores.
Usava o que não gostava
Paria quando não queria
Chorava escondido
Ressentia-se de tudo.
Adotara a religião da mãe
O time querido do pai
As manias do irmão
A tristeza do marido
O futuro distanciamento dos filhos
A ilusão da telinha
O sorriso estudado da atriz
A gula do faquir.
Era fraca e fingia.
Ela própria se condenava
E se envergonhava
De ser quem era.
Escondia de si mesma
A sua vida que nunca foi sua.
Preferia ter donos,
Regras, impedimentos.
Igual a tantas,
Igual a muitas.
Um vício sem cura:
A mesmice de sempre.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Cultura Fluoxetina


Propôs um brinde à recente tristeza, mas foi negado: queriam brindar à alegria, à vida dos que ali estavam, à sorte da união. Queriam animá-lo, queriam fazê-lo esquecer. Brindaram. O seu copo esvaziou não em nome da farsa burlesca. Não: a mentira precisaria de refinamento. Mentiu para si que aquele ressentimento abrandaria no outro dia. Mentira diante do espelho nítido e bebera a um esquecimento que não viria a conhecer. Negou a verdade e sorveu o líquido todo, em dose única.
Pensou que esses anos não permitem tristeza. Lembrou de seu último luto, do quanto gostaria de vivê-lo com toda a intensidade possível e, no entanto, como se rendera aos encantos desgraçadamente feios e vazios da nova covardia social que dita: 'os que sentem são fracos. Não sinta!'. Foi ao trabalho quando queria enterrar-se. Tomou seu banho sonhando com um afogamento. Até amou a sua mulher naquele tempo, embora com o surreal desejo de escoar-se junto ao esperma sofridamente jorrado. E sumir, de uma vez por todas.
O uísque barato queimou-lhe a garganta e acomodou-se desajeitadamente em seu estômago revirado de amargas lembranças. Pensou em vomitar, mas isso seria bom demais para acontecer com ele. Sabia - melhor: precisava! - sofrer. Sofreria com a ressaca que, com sorte, seria tão grande que abafaria sua real dor. Sofreria uma diarréia daquelas que banham o sujeito de suor e estoura as varizes. Conseguiria mascarar sua perda tatuando-a em seu próprio corpo.
Sofreria abundantemente, como as grandes perdas exigem e a sociedade condena.
Propôs um outro brinde: à ignorância! E, desta vez, todos brindaram com ele.
O líquido vagabundo feriu-lhe novamente a garganta e descansou mais uma vez em seu estômago, a cada minuto mais revirado.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Desabafo

A Tirana chega sem aviso
Ceifando futuros sonhados
Até de quem sequer pôde,
Uma única vez, abrir os olhos,
Berrar de fome ou mamar o peito.
E em nós fica essa dor
Pelo que podia ter sido
E jamais será.
Nunca mais.
O futuro do pretérito é o que resta,
Quando desejávamos todas as outras formas verbais
De tempo. Mais tempo. Muito mais.
Sobra a inveja de quem tem fé;
Sobra a desesperança no destino.
Ficam os móveis sem uso,
As roupinhas sem corpo
Os olhos com lágrimas
E a vontade de gritar:
Vai tomar no cu, mundo escroto.
Vai tomar no cu.

Logro


Costura o fino fio de sua vida
Guiando-se pela necessidade
Tendo por ambição o conforto
De poder olhar para trás e sorrir;
Em cada entrelaçamento de fios
Uma história vivida
Nem sempre tão boa,
Nem sempre dorida
Mas sempre sua:
Concebida e extenuada
A seu bel-prazer
- Assim ele acredita.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Para Joana, João, Débora, Artur, Juliana, Paulo, Edu, Natascha, Daniel...

Um pedido aos amigos: por favor, não me instiguem mais a ir ao carnaval recifense. Estou retorcendo o útero, sabotando a aorta, desautorizando o cérebro, num esforço hercúleo para me manter longe da Grande Festa. Devo ser abduzida para Varginha mas, se ainda assim eu achar que tem algum risco de cair na folia (Marte tem carnaval???), decidi que correrei para Curitiba, porque lá é certíssimo de não ter vestígio de carnaval.
O problema não é o carnaval em si, mas sua condição sine qua non: estou proibida de beber. Imagine a cena estapafúrdia: eu na Sé, na barraca do índio, pedindo um suco de laranja sem gelo? Não dá.
É isso, amigos. A pura verdade. A terrível verdade. Nada de álcool por um bom tempo. Nem álcool nem bebida gasosa. E nem cafeína também. Resquício da megafarra do aniversário: refluxo gástrico é o nome do bicho de sete cabeças.
Se fosse o refluxo por si só, dane-se. A merda é que não estou conseguindo dormir uma noite inteira desde que completei 38 anos. Laringe, faringe, esôfago, tudo transformado num único ducto de fogo. Acordar sufocada no meio da noite, amanhecer rouca. O inferno em vida - e olha que sou atéia.
Nada de álcool. Ou quase nada, que ninguém é de ferro e minha determinação no cumprimento de medidas drásticas adotadas por médicos não é lá grande coisa. Diminuí bastante o consumo. Em quatro dias no Rio de Janeiro, só consumi uma garrafa de cerveja (e tava quente, a miserável!) no sábado à noite e mais duas long neck (geladas, ufa!) no almoço do domingo. Segunda e terça, nada de álcool ou coca (-cola). Ontem à noite eu até tentei evitar, mas a ocasião não permitiu frescuras: TIVE que festejar o novo emprego da minha prima. Só três garrafas e, infelizmente, sozinha, já que o restante do grupo preferiu drinks. A vida é dura, camaradas.
De modo que é isso: fazendo das tripas coração e do ormeprazol minha salvação, não vou brincar carnaval neste ano e vou continuar neste esforço inumano contra álcool, coca (-cola), café. Se na quinta-feira pós-carnaval eu não der sinal de vida, é porque eu consegui cumprir todas as recomendações médicas.
Mas acho improvável. Absolutamente improvável.
Em 2010 eu me vingo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Casas José Araújo


Essa é para pernambucanos saudosos: quem lembra das propagandas das Casas José Araújo?
Encontrei boa parte delas no Youtube. Mas a "Praia" eu fiz questão de linkar aqui (mais ou menos, que eu não sei fazer esse troço direito):
Escutem. Pernambucanos vão sorrir de canto a canto. Não-pernambucanos e desacostumados com nosso linguajar, vão sofrer. Como não sou tão ruim, aí vai a letra da música:

Propaganda das Casas José Araújo
"Praia"
Na praia acontece coisa de lascar
Um magrelo comprido querendo jogar
Com um gordo metido, redondo e baixinho
Uma arenga [discussão] danada pru´mode [por causa de] um joguinho
A Maria Nicota fazia marmota [tirava onda, mangava, fazia troça]
Pra Zefa vermelha [muito queimada do sol] que tava na areia
De saia de chita, toalha bonita
E a outra vestida de tanga comprida
Se come de tudo, se bebe demais,
É carro parado na frente e de trás
Barulho, zoada, sorvete, café
E água de côco pra quem bem quiser
É nego com nega, é preto com branca
Morena e mulato queimando as pelancas [a pele]
Turista decente, andando elegante
Rapaz enxerido, metido a galante
O velho deitado na beira da praia
Olhando as meninas e as moças de saia
Estava bem simples, espiando as sereias
Chegou sua velha, puxou-lhe as orelhas
Essas coisas acontecem na beira do mar
Num domingo de praia com o sol a brilhar
Prestando atenção você vai notar
Muito mais coisas boas de se espiar.

A tal da torta


Ontem eu me senti desafiada a falar de torta de limão, como assunto trivial comumente abordado em blogs femininos. Acontece que meus poucos dotes culinários estão contra essa missão: hoje pela manhã, quase como um castigo antecipado ou uma boa desculpa para não cumprir a obrigação, praticamente fiquei sem o dedo indicador da mão esquerda só porque inventei de fazer uma torradinha básica. Pelo menos, dessa vez, não me queimei ao tirar as torradas do forno (sim, apesar da perda de uns 17 litros de sangue, mantive minha determinação de fazer as tais torradas. E as comi com um prazer incomum). Ninguém me avisou que a serra de pão era nova, e eu estava acostumada com a outra, cega.
Mas o acidente não significa que eu tenha pouca intimidade com a cozinha. De modo algum. Tenho muita intimidade, e a balança de qualquer farmácia atesta isso. Mamãe também pode atestar.
Inclusive (olha aí os 360º) torta de limão é uma das minhas especialidades. Nasci pra fazer torta de limão. Aprecio mais fazê-la desaparecer - sou rápida, quando necessário.
Lembro de uma vez que só tinha a última fatia na geladeira, e, por uma questão moral, meu irmão mais velho teria direito a ela, já que estava adoentado. Frescurinha familiar, claro. E como não sou chegada a frescura, sou questionadora dos costumes e vivo desafiando a ordem social das coisas, aproveitei um momento de descuido materno e... zapt!, devorei a herança do primogênito asmático. Com incrível rapidez. Possivelmente, eu entraria no Guinness World Records. O medo de ser flagrada faz milagres. Foi tão rápido que penso, hoje, que sequer senti o delicioso gosto da mistura doce-azedo.
E tem a torta da mãe da Adriana, a melhor que já comi na vida (só confesso isso aqui porque sei que minha mãe não lê o blog). Já virou tradição: é meu presente de aniversário. Todo 29/01 tem torta de limão na minha casa, caso contrário eu não faço aniversário. Portanto, por este ângulo, não é mentira se eu sair espalhando por aí que sou "de menor" - só conheço a mãe de Adriana há três anos.
Gugu-dadá.
O que mais gosto na torta de limão? A torta. O sabor do doce condensado ao azedo do limão. A textura do creme. A massa de biscoito quebrando o doce. A camada de "suspiro" deixando o creme ainda mais leve. Tudo.
Se não fosse esse dedo cortado, ia fazer uma agorinha. Como assim, não atrapalha em nada?? Claro que atrapalha. E eu lá sou mulher de fazer torta de limão sem lamber a vasilha do creme? E como se lambe a vasilha do creme sem o indicador?
No entanto... Nada me impede de ir na padaria da frente comprar uma fatia.
Dá licença.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Facetas do Rio


Homem falando sozinho enquanto entra em seu carro, por volta das 18h, saindo da praia de Copacabana, bêbado como peru em véspera de natal:
- É isso aê, mermão, isso é Copa... Dá de tudo...

Cara comentando com dois outros colegas no calçadão, enquanto duas mulheres passam:
- Pô, isso é o Rio... Passar o dia na praia, jogar bola com os amigos, tomar umas geladas e agora (comendo a passante com os olhos, inclusive) ir pra casa, tomar um banho e fazer um amorzinho delicioso com essa nêga gostosa...

Discussão entre dois estranhos em plena Rio Branco às 14h da sexta:
- Pô, caralho, isso é lugar de mijar, seu escroto?
- É não, é? E onde fica esse lugar? Na tua casa, malandro? Tu tem nada com isso, mané?

Moça ao celular, dentro do ônibus:
- É? Pô, foi? Que cara-de-pau... E aí, tu fez? Fez!? Porra, tu tá louca, tu fez o que esse banana pediu? Caralho... Bom, agora tá feito. Tô entrando no túnel, depois te ligo pra saber como ficou a treta. Mas olha, e o show hoje da Maria Rita, a gente compra o ingresso na hora mesmo? Alô? Alô? Caiu. (A moça olha para o telefone, já desligado, e diz: - Pô, bateu na minha cara! - possivelmente esquecida que ela estava no túnel).

Duas amigas conversando, caminhando em direção à praia:
- O Rio é bacana, né? Lindão... não tem lugar mais bonito do que esse não. Ei, vamos atravessar para a outra calçada que aí na frente vem uns moleques sujos e podem roubar a gente. A merda é que aqui tem muita violência. Mas tem em todo lugar. E a praia, então? Lugar democrático, o pobre curte, o rico curte... se bem que eu não costumo vir à praia não. Só tem gente feia. E eu não curto areia, saca?

Três senhoras na saída do Shopping conversam. Uma sugere que peguem o ônibus gratuito que para bem na porta do shopping. Resposta de uma delas, por sinal a mais maquiada das três:
- Tá louca? Pegar ônibus na porta do shopping? Quer queimar meu filme? Lógico que não. A gente pega um taxi até a Barata Ribeiro, de lá a gente pega o ônibus.
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Acho o Rio incrível, único. Gosto particularmente de ver como as pessoas se gostam e gostam de sua cidade. Gosto do movimento a toda hora. Gosto da efervescência, e até do caos generalizado (não viveria dentro dele, mas uma vez ou outra é interessante).
Ressalvo: só conheço os zona sul do Rio, principalmente Copacabana. Sei que "pra cima" a coisa é diferente.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Toleima


Em meu baluarte lacustre
não encontrei o sonhado mistral,
apenas a febre palustre
designada, não por um douto,
e sim pelo mero cantoneiro
- revelado um grande patranheiro,
insuflador de terrores
em sujeitos parvos, atoleimados,
como esta que vos fala.
Ao longe reconheci a elegia
lúgubre, renitente, insanável,
lembrando-me o regresso ao estado inicial
e causando-me volvos incontínuos
- violentos prenúncios da terçã
que o fadário me cominou
como remate de uma existência ímpia
encalacrada de piáculos
sem páculos ou possessores.
Deixo, assim, de perpetuar-me
acantoada pelas quelhas
intermediando justeza e assombramentos,
abjurando o avelhentado
expiando o incipiente
opondo-me a reverências
(veladas ou nítidas).
Hipocritamente mortificada,
revivesço faustosamente.