A gente cresceu assim desse jeito, como se fosse irmão um do outro. Gostava mais do Zé do que qualquer um dos meus irmãos de sangue, mas isso não quer dizer que eu não gostasse dos filhos dos meus pais. Gostava de todo mundo, mas Zé era meu irmão preferido. E eu sabia que o Zé gostava de mim assim também, como irmão predileto. Como a gente era o primeiro filho de cada família, a gente teve a sorte de ir pra escola desde cedo. Pai dizia que ao menos um tinha que ser estudado, que era pra eu me formar e ajudar os outros a estudarem também, pra tudinho melhorar de vida.
Todo dia eu ia pro grupo escolar, que depois mudou de nome e passou a ser chamado de escola municipal. Gostava de estudar, mas gostava mais mesmo era da hora do sino, quando a professora mandava a gente sair da sala pra dar descanso pra cabeça. Aí juntava os meninos todos e a gente brincava com a bola de Iraquitan, que era meio abestalhado. A gente não gostava de brincar com Iraquitan porque ele não entendia nada direito, tudo a gente tinha que explicar duas vezes para aquele bestado. Mas ele tinha a bola, só ele tinha a bola. Ele não era mais rico do que eu ou nenhum dos meninos. A bola que ele tinha, a mãe dele ganhou num bingo na festa da padroeira. Ela queria ganhar a cesta de comida, mas só tirou a sorte no prêmio da bola, e Iraquitan terminou ficando com o prêmio porque a mãe tinha pena dele, que era bestado.
Eu e Zé éramos bons alunos. Quando ficamos mais velhos, na idade em que não podia mais estudar no grupo, os pais da gente se juntaram e combinaram de mandar nós dois pra Recife, na pensão de uma mulher que era aparentada da prima de mãe e que ficava lá pros lados de Santo Amaro. A mulher tinha dito que fazia um precinho bom se os dois fossem dividir o mesmo quarto, aí o pai acho que era coisa boa de se fazer, e o pai de Zé também achou. E foi assim que a gente veio bater aqui na capital.
Foi difícil, eu não vou mentir aqui pra vocês. Toda vez que eu escrevia uma carta pra mãe, dizia que tava tudo bem, que não faltava nada, mas era pra mãe não se preocupar, coitada. A pensão era ruim, a comida era pior ainda. Ainda assim, a gente conseguiu estudar direitinho, conseguiu passar de ano todo ano. Namorada a gente não tinha, porque na cidade grande, naquele tempo, só namorava com moça de família quem era moço de família, e a gente não era. A gente fazia uns bicos quando aparecia a chance, e com o dinheiro a gente ia adquirindo umas coisinhas bestas, ou gastando com as putas do centro - que a essa altura a gente já era homem feito.
Só sei que nessa dificuldade toda a gente foi levando a vida do melhor jeito que dava pra levar. Como não tinha dinheiro pra se divertir direito, a gente enfiava a cara nos livros, e assim a gente conseguiu, logo de primeira, vaga na universidade. Zé foi estudar pra ser doutor, pra ser médico, e deixou todo mundo da família mais contente que pinto no lixo. Eu achava bonito ser advogado, e consegui me formar sem ser reprovado nenhuma vezinha. Pai e mãe quase morreram de felicidade quando eu contei que tava estudando.
Muita coisa boa e ruim aconteceu nesse tempo de faculdade. E eu e Zé sempre unidos, sempre irmanados, passando por tudo junto, um dando força ao outro, sempre na pensão de Santo Amaro. A gente era separado lá na faculdade porque era pobre. Na minha turma de aula, os outros queiram porque queriam que eu deixasse de falar "como matuto", como eles diziam, pra falar "como gente", ou seja, era para eu imitá-los. Não, moço: hoje eu uso até terno, mas nasci bicho do mato e vou morrer assim. É como eu gosto de ser, e se você não gostar, o problema é seu.
Lindaura gostava, no começo. Ela não implicava com meu jeito de falar, e dizia que gostava de mim. Eu mesmo acho que ela gostava mesmo. Não sei o que ela viu em mim, mas gostou e eu gostei dela também. A gente namorou com a permissão dos pais dela, tudo certinho. Só que de tanto a gente namorar, eu quis pegar mais intimidade com ela, e ela me apertou dizendo que se era pra começar com safadeza, era melhor casar. E foi por isso que eu casei. Pela primeira vez na vida, ia morar distante de Zé. A essa altura, eu recém-formado, já ganhava um dinheirinho. Aluguei uma casinha em Campo Grande e fui levar o resto da minha vida.
Zé demorou mais que eu a casar. Dizia que o curso exigia muito mais estudo, e eu acho que era verdade mesmo, porque Zé só fazia estudar, enquanto eu namorava com Lindaura. Zé só foi sair da pensão quando já tinha mais de 30 anos. A essa altura ele já tinha um monte de emprego e ganhava um dinheiro bem bom, mas só queria saber de juntar dinheiro e de trabalhar, trabalhar, trabalhar. A gente ficou meio afastado nesse tempo. Aí um dia ele teve lá em casa, Lindaura já esperava nossa primeira filha, e disse que tinha encontrado uma moça boa e ia se casar.
A moça era boa mesmo, parecia. Zé casou com ela. E essa foi a nossa desgraça.
Hoje eu já tô cansado de contar história da minha vida. Outro dia eu termino essa conversa.
Boa noite procês tudo.
Um comentário:
Ê, Cláudia!
Engraçado que a história se passa em Pernambuco, mas a narrativa é mineira. Como você está em São Paulo, só falta incorporar agora o terceiro sotaque nesta história.
Narrativa de uma amizade de infância que se fortalece(?) para o resto da vida. O engraçado é que inevitavelmente lembrei de Arnaldo, meu grande compadre e seu irmão.
E só para tirar um sarro, como diria um amigo meu, apesar da distância, a amizade é quase a mesma.
Beijos,
Dimas
Postar um comentário