segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Pequenas coisas


Há tempo não vejo a imagem de meus meninos
Nem consigo me balançar na rede da varanda
Muito menos sonhar de olhos abertos
ou sentir o perfume dela.

Há tempo deixei de sorrir francamente
De olhar para os lados quando caminho
De observar rostos, rugas, peitos
De ser sincero comigo mesmo.

Há tempo minha vida segue sem rumo
Sem mapa, sem motivo, sem mar
E toda terra que avista é um porto
No qual não quero ou não posso atracar.

Há tempo eu lamento em vão
Em segredo, com vergonha, vencido
Atrás de culpas, culpados, perdões e perdas
Dando voltas e voltas em torno de mim mesmo.

Há tempo não tenho sossego
Não tenho razão para seguir ou ficar.
Há anos que me assombro com
Minha própria solidão.

Há tempo não me iludo com felicidade
Nem peno com o sofrimento de ninguém
Há anos desisti de sonhar
E adio o adeus enfim assumido.

Ao fim de tudo




Sombria noite
da lua nova
escondes algo
que a mim devora
Tão reticente
me absolves
de pecados outros
cometidos outrora.
Noite sombria,
a que vens?
perturbar minh´alma
é o que convém?
Acende esta lua,
ilumina o mundo.
Meu passado foi,
Meus pecados são.
Não interfiras, sombria,
em meu renascer
foges, por caridade,
deixa-me fingir.
Devassa noite,
que me castiga:
o meu tormento
tu instigas.
Em busca de um sonho
vaguei pela vida
larguei amores
causei feridas.
Desavenças e ódios
semeei no caminho
ao invés do sonho,
colhi espinhos.
Nada me restou
a não ser a ti, sombria,
para lembrar os desencantos
de uma vida vazia.

(novembro/2004)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Meu ídolo


Sonhei com Nelson Gonçalves esta noite. Assistia a um show dele, e no sonho ele cantava exatamente estre trecho "mania é coisa que a gente tem mas não sabe por quê. Dentre as manias que eu tenho, uma é gostar de você".
Pois é, eu gostava do Nelson Gonçalves. Sabe de quem eu também gostava muito? Noite Ilustrada! Mas meu ídolo maior, a pessoa que sempre quis conhecer na vida, que eu achava que era a pessoa mais interessante do mundo, este se foi sem que eu tivesse a oportunidade de sentar com ele e conversar - aliás, ouvir, ouvir e ouvir. Era Mário Lago.
O estranho é que esse meu gosto partiu da infância. Desde criança eu tinha essas preferências. Ah, e tem o Julio Iglesias. Achava impressionante a voz dele. Meu pai sempre contava que eu, desde pequenininha, não podia ouvir uma música do Julio Iglesias no rádio, pois ficava o tempo todo admirada com a voz do homem.
Não perdia um show do Nelson Gonçalves. No último que eu fui eu devia ter uns 16 anos. Foi no Olinda Praia Clube. Meu pai fez que fez, e terminou me levando para o, digamos, camarim do cantor. Nelson estava bêbado - foi o que eu pensei na época, inexperiente que era. Tinha os lábios muito descoloridos, pálidos, descascados. Lembro que vi aquilo de perto e imediatamente me lembrei de uma barata. Argh. Pois o homem me deu dois beijinhos no rosto. Beijo molhado, gelado. Como disse, foi o último show do Nelson que eu fui. Mas ainda me arrepio quando escuto aquela voz entoando "cabocla, teu olhar está me dizendo..." ou "naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim". Vozeiraço!
E tinha o Mário. Sentia que precisava conhecer o Mário Lago. Ouvia todos os CDs dele que batiam na minha mão, colecionava as letras de música dele, assistia a todos os programas televisivos que ele participava, lia todas as entrevistas, tudo que saía sobre ele na mídia. Era fã mesmo, em qualquer sentido da palavra. Sempre me via com ele numa confortável, simples a ampla sala de estar, eu acomodada em um sofá, ele em outro. Imaginava mil e uma conversas, milhões de histórias que ele contaria, lições que eu aprenderia com um verdadeiro Mestre. Não sei como se originou esse fascínio por Mário, mas começou na infância. Acho que tudo começou com a Amélia. Escutar essa música e pensar sobre seus múltiplos significados é o que vem de mais forte na memória, sempre que penso em Mário. Lembro de ouvir a mesma música 1.500 vezes numa só tarde, na vitrola do meu pai (aliás, era o máximo na vizinhança. Todos os vizinhos pediam para gravar fita cassete no som 3 em 1 de papai). Lembro de ter feito isso enquanto morávamos no bairro chamado Barro, perto de Areias. Quando nos mudamos de lá eu tinha 8anos. Portanto, uma feminista bem precoce, talvez.
Chega. Foi bom sonhar com Nelson. Mas quando eu sonhar mais uma vez com a conversa que eu não tive com o Mário Lago, aí sim, acordarei nas nuvens.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ladeira abaixo


Quando tudo cansa,
a natureza espera
o tempo só passa
o suor não escorre
o amor arrefece
a luta é perdida
o monstro se apossa
o corpo se vai
para a rede armada
em parede alguma.

Se resta esperança,
não basta a todos
e poucos a percebem
em meio ao caos
de sujeitos e objetos
substantivos adjetivos
diminutivos, diminutos
tantos sentimentos
- deuses, tantos! -,
e tão poucos para mim...

E vem a perda
tão rejeitada,
recusada, detestada,
por mais que esperada fosse
- e ela sempre o é.
A agonia do oco
tripas vazias,
sal abundante, choro,
dói não se sabe onde
e vem o arrependimento.

A fase da ilusão.
Tudo era áureo,
rico, belo, feliz
sem defeitos - e se
existiam, que graciosos... -
restou muito, quase tudo
há o desejo, a vontade
o poder, a força, a decisão
vem a certeza do conserto
quebrada pelo sonoro "não".

Fica a vida
fica a agenda, a rotina
a obrigação de crescer
de aprender a ceder
ou de se (re)conhecer;
o espelho intacto,
a alma, nem tanto.
Fica a boca amarga
saudade do que devia ter sido
fracasso pelo que foi.

Fica a certeza de existir
e superar, se superar,
do dia depois de amanhã
da fome na hora do almoço
do despertador a tocar
da vida para levar
de fantasmas a criar
de sentimentos a enterrar
da dor da perda a sofrer.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A identidade secreta de Noel


Acharam!!!
Encontraram o Noel da Riachuelo, descobriram sua história!!!

Meu eterno amigo e professor, e ao mesmo tempo ex-marido, leu o blog ontem e me mandou notícias do Papai Noel da Riachuelo! Calma, vamos por partes. É que estou eufórica, acabo de ler o "relatório de descoberta".

Quando morei na Riachuelo, era casada. Atualmente estou em Minas, mas meu ex-marido continua morando lá, no mesmo prédio, só que o atual apartamento fica três andares acima de onde havíamos morado. Pronto, já os inseri no contexto.

Pois bem. Ele me conta que, voltando tarde de noite para o seu ap, depois de uma sessão de conversa de bar, reencontrou o papai noel sob a mesma marquise de outrora. Animado (nós compartilhávamos da mesma curiosidade sobre a figura), encostou na marquise e puxou papo. Bem, pelo que ele me conta, a conversa foi até o raiar do dia, e só terminou porque papai noel tinha (tem) um compromisso todos os sábados cedinho no Mercado São José, e compromisso com os colegas de rua é para ser cumprido.

A conversa variou muito mas nunca tangenciou a identidade de nenhum dos palestrantes. As idéias é que interessavam - como, aliás, devia ser sempre. Como contou meu amigo: "Eu que vinha entediado de uma conversa de bar, dessas que servem apenas para matar o tempo e olhe lá. Fiquei uma semana em estado de graça por ter recebido tanto, de forma tão imprevisível, de alguém que não me pediu nada em troca além de uns tragos. Uma conversa limpa, sem indícios de desequilíbrio ou mágoas. Uma consciência tão cristalina que me causou inveja, nada de lamentações ou relatos de perdas e danos". Ai, que inveja!!! Isso só aguçou ainda mais minha curiosidade.

Bem, por outros caminhos nada tortos, e profissionais, eis que tempos depois dessa conversa com o bom velhinho, meu ex-marido se depara com notícias da figura através de uma tarefa passada para a turma de universitários. Uma aluna afirma que o velhinho de barbas brancas e pés rosados (sim, ele voltou à forma original e admirável!) é um ex-professor universitário, e dos bons. Diz que quando ele tem saudade das aulas e do convívio com os alunos, perambula pela Rua do Lazer.

Ok, dou o braço a torcer. Papai Noel existe.
Sei que parece babaquice, mas essa notícia e essa história me fizeram tão bem hoje, me deixaram tão feliz, que vou até dispensar a cartinha anual que escrevo com destino à Lapônia. Já ganhei meu presente.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O Noel da Riachuelo


Somava os centavos, um a um,
pensando no orgulho degredado
perdido nalguma avenida
que nem a ele importava qual fosse.

Lembrar do que fora já lhe era inútil,
senão impossível.
Pensar no que se tornara doía.
Sozinho vagava, é tudo.

Ora alucinado, ora envergonhado
embrulhara a memória e se
dedicara a sobreviver:
o animal há de saciar o corpo.

Vestido de jornal, nas madrugadas,
a consciência cobrava seu preço.
"Para quê vives?
Anda, responde, diz: Para quê?"

Resposta ele nunca tinha;
desconfiava mesmo que não houvesse.
"Cala-te. Não vês que te troco
por um prato de comida azeda?"

Trocaria a consciência como trocara os livros,
os últimos bens a lhe escorrerem das mãos.
Primeiro havia perdido o amor, o próprio.
Ou teria sido, anteriormente, a sanidade?

Aos poucos, e dolorosamente, se adapta.
Um moleque da rua lhe ensina:
"teu mal é que tu pensa. Cheira aqui que passa".
Mais um degrau para o fundo. Não faz diferença.

A fome some, a consciência é calada,
a vida se abranda. Mãos estranhas acariciam.
Quando tudo passar, a miséria estará de volta.
Não tem importância. Não faz diferença.


____________________________________________

Em Recife, morei em um prédio na Rua do Riachuelo por um bom par de anos. Na vizinhança, muitos moleques de rua se abrigavam embaixo das marquises, e lá faziam tudo o que a vida lhes permitia, embora a lei não. Um dia, apareceu um novo "morador", a quem chamei de "papai noel". Era estranho, tinha cara de ser um erudito. Estava sempre com uma caixa, repleta de livros. Sempre estava lendo algum. Não chegava a ser gordo, mas estava um pouco acima do peso, tinha uma longa e cuidada barba branca. E os pés, então? O solado dos pés era absolutamente rosa, uma coisa impressionante! Sempre que passava por ele, minha atenção ia primeiro para aquela barba impecável, depois para os livros, e finamente para aqueles pés limpíssimos e bem cuidados.
Pensei em muitas prováveis histórias que poderiam ser a do papai noel. Podia ser algum amante dos livros que resolveu "se libertar do sistema". Podia ter sido traído pela mulher adorada, e se entregou ao mundo. Podia ter surtado. Podia ter perdido tudo o que tinha num carteado. Sei lá. O cara mantinha a dignidade, e a vizinhança reconhecia: sempre que vinha para minha casa no horário de almoço, lá estava ele sentado em cima de um papelão, livros ao lado, quentinha na mão (marmita mesmo!), comendo de garfo e faca. Às vezes tinha até suco para acompanhar.
Quando voltava da universidade, tarde da noite, ele estava deitado, cabeça apoiada nos livros, com um cobertor grosso forrando o chão e outro por cima de seu corpo. Nada de moleque por perto.
Assim foi, foi... até que um dia eu passei e notei a barba suja, degrenhada. Olhei a caixa e nada - sem sinal de livro por perto. Pensando no pior, encarei meus temores e olhei com atenção para o pé: estava podre de sujo. Papai noel virara, enfim, um pedinte sem tirar nem pôr.
Passou-se mais um tempo, eu observando com atenção as amizades que o outrora bom velhinho fazia. Um monte de moleque cheira-cola o adotara como padrinho, ou coisa que o valha. Certa noite, voltado tarde para casa, vi algo que me chocou: papai noel tava cheirando cola, junto com uns oito moleques, entre eles duas meninas tão pequenas que nem peito tinham.
Desisti. Papai noel estava perdido. Aliás, nem era mais papai noel. A barba já tinha deixado de ser branca e estava amarelada.
Noite de entrega do Prêmio Cristina Tavares de Jornalismo. Noite de rever amigos, falar mal de inimigos, descobrir "por onde anda" outros. Depois de uma esticadinha numa pizzaria, já de madrugada, vou para casa. Passo, de carro, pelo "bom velhinho". A putaria estava generalizada: o ex-papai noel tava numa orgia com os meninos e as meninas de rua. Nem se importavam com quem passava, nada. Não acreditei. Fiz a volta com o carro e passei de novo pelo local. É, era aquilo mesmo que eu tinha visto da outra vez.
Desencantada, minhas versões de prováveis histórias daquela figura mudaram muito. Por fim, aprendi a passar por ele sem dirigir o olhar sequenciamente para a barba (imunda), os livros (desaparecidos) e o solado do pé (preto). Semanas depois, ele e seus amigos foram jogados dentro de dois camburões, e desde então nunca mais os vi.
Conclusão: papai noel não existe.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Um pinguinho de exagero



A gente vicia em internet.
Passei o final de semana todo sem conseguir me conectar. Anotei o número de todos os erros apresentados, depois vou fazer umas análises combinatórias e jogar na megasena, pra ver se isso foi sinal dos céus ou azar do créu mesmo. 734, 633, 627, que eu me lembre. As mensagens diziam que o telefone não estava ligado (!), que tinha sido encerrado o protocolo sei lá de quê, que não havia acesso à porta de comunicação (hein? onde eu larguei essa chave?), e mais um monte de bobagens sequenciadas. Fez com que eu me lembrasse do dito popular: desculpa de amarelo é comer barro.
Como moro em zona rural, a única saída para conexão de internet é essa que estamos usando, via celular. Então nem adianta reclamar com o servidor, senão os caras ficam abusados com a gente e sugerem que, já que estamos achando ruim, cancele o contrato. Não podemos fazer isso. Formamos uma comunidade familiar alérgica a telefone. Se a gente quer levar um papinho com alguém, liga o msn. Se o papo é mais sério, vai por e-mail. Se é só um recadinho, vai pelo orkut. Se dá saudade, abrimos a cam. Somos toxionlinecômanos (ou toxiconlinemaníacos, qual será a terminologia correta?).
Se me chateei por ficar sem acesso, meu irmão, se estivesse pelo sítio no final de semana, a essa altura estaria na UTI cardiológica.
O doutor:
- Ele está com uma pressão elevadíssima. Alguma contrariedade forte nos últimos dias, muito estresse no trabalho, algum trauma recente?
- Não senhor, doutor. Ele sofreu um acidente em agosto e ainda está de licença médica por isso. Ele colocou o carro numa oficina mecânica em março e o carro ainda não ficou pronto. Todas as cadelas do canil cruzaram com o rotweiller do vizinho e geraram dezenas de viralatinhas. Mas tudo isso ele já tinha superado. O problema é que ele tentou acessar a internet o final de semana todinho e não conseguiu.
Seria mais ou menos isso. O único exagero nisso é a atenção e a delicadeza dispensadas por um cardiologista de emergência à família de um paciente, desde que somos todos simples pagantes da saúde pública - ou seja, temos plano de saúde de privada, aliás, privado. Nada de dinheiro vivo, doutor.
Voltando do arrodeio, cá estou novamente me queixando da falta de acesso à internet no final de semana. Fiquei sem escrever, fiquei sem ler os blogs, sem saber das "últimas notícias no Brasil e no mundo", sem abrir meus e-mails (isso dói), sem vagar por esse mundão do google. Fiquei sem meus joguinhos bestas, sem o msn. Quase uma náufraga numa ilha deserta. Nem consegui me concentrar direito para as minhas leituras de livros, aqueles objetos já quase classificados como "não-identificados" pela nova geração. Isso porque toda hora voltava para a frente da "teletela" e fazia uma nova tentativa de conexão. E a frustração, seguida de mais uma nova vã tentativa.
Isso não é caso para se queixar no Procon. Não é uma simples deficiência na prestação de um serviço qualquer. Isso já virou caso para a Comissão de Direitos Humanos da ONU.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Sunshine


Lembrei de algo que certamente irá me despertar: assistir mais uma vez ao filme Sunshine. Um dos melhores que já vi na vida. O filme todo é marcante, mas a cena que se passa num campo de concentração me causa ânsia e uma variedade de sentimentos tão fortes que só isso valeria anos e anos de psicanálise.

E agora?


Tô a fim de escrever aqui, mas não sai nada. Comecei um texto falando do quanto eu gosto de Sampa, em comparação com o Rio. O texto me levou a Minas e às razões pelas quais me mudei para cá há um ano. Apaguei tudo e comecei um outro texto, no qual tentava explicar essa minha sensação de que não preciso mais procurar meu canto, eu o achei em Minas. Daí entrei pelo defeito mineiro, a falta de mar, e naveguei para outro rumo, o Espírito Santo (também chamado praia de Minas). Aí vi que não era nada disso que eu queria falar. Deletei e vim confessar o meu fracasso diante de todos.
Fiquei na internet até muito tarde na noite passada, e depois me agarrei aos livros até perto das 4 da manhã. As cadelas me acordaram, com latidos bem na janela do quarto, às 7. Desde então, sonolenta mas incapaz de pregar os olhos, estou procurando o que fazer. Nesse estado, não sou boa leitora, então nem tentei ler nada. Acabo de descobrir que também não posso escrever.
Tô com a sensação de que o dia não vai ser bom.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Tá dito



Me falaram
Que não queriam dizer o que disseram,
Que queriam dizer o que não disseram,
E que eu preciso acreditar na palavra.

Não me animo
A crer na expressão de quem não pensa
Nas falsas desculpas do enforcado;
Na máscara vestida para o pedido de perdão.

Desista
É o que eu digo, redigo, redijo
É minha palavra, meu pensamento, meu ato
É o que não será desfeito: é meu conselho.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Só um caso


Início de noite quente. Entra em seu carro, liga o ar condicionado, espera que todas as portas se fechem e segue. Ao seu lado, a esposa que o acompanha na vida há 31 anos. Casou-se aos 23, jovem. A amou, a amava. Mas reconhecia um quê de interesse em seu casamento. No banco de trás, duas jovens. Suas filhas. Uma já desquitada, com uma filhinha de 2 anos e pouco. A outra prestes a se casar com um canalha, um rapaz ambicioso e preguiçoso. Um legítimo golpe do baú, que ele teria que engolir em seco.
Todos trabalhavam juntos, na empresa que montara há uns cinco anos. Saíam de casa juntos, almoçavam juntos, voltavam para casa juntos, faziam os mesmos programas de final de semana juntos. A vida se acomodara de um jeito que o fazia acreditar que era feliz, muitas conquistas contabilizadas, a empresa só dava lucros, estava tudo indo muito bem.
Duas vezes por semana, saía à tarde a pretexto de uma reunião qualquer. Mentia. Ia ao encontro de Lúcia, sua amante de 25 anos. Isso já durava mais de um ano. Também contabilizava a relação extra-conjugal como importante conquista em sua vida. Lúcia lhe dava ânimo, lhe alegrava, despertava um desejo que há muito não sentia. Antes tivera incontáveis amantes, mas Lúcia era diferente.
Nem era muito bonita, mas tinha uma personalidade cativante: forte e doce ao mesmo tempo, em proporção equilibrada. Os dois gostavam muito de sexo, e com Lúcia ele conseguia liberar todas as suas fantasias sem sentir-se ridículo com isso. A diferença de idade nunca se fez presente entre os dois.
Pensava em Lúcia. Ligava para ela todos os dias, não por obrigação, mas por prazer. Sempre que podia escapar, ia ao seu encontro. Na maioria absoluta das vezes, a conversa terminava em sexo. Mas em outras vezes não, e isso também era gostoso. Dialogar. Trocar idéias. Coisas que ele não tinha em casa, a não ser quando se tratava de negócios.
Nunca pensara em largar a família para viver com Lúcia mais intensamente. Aliás, chegou a pensar nessa hipótese algumas vezes, mas nunca a sério. A amante não lhe exigia nada, nunca o encostou na parede, parecia e dizia estar satisfeita com a relação do jeito que era: tesão, amizade, encontros fortuitos. Bastava para os dois.
O problema é que Lúcia mantinha uma vida paralela também. Namorava, saía com outros homens, se divertia. Ontem ela confessara estar apaixonada por outra pessoa. Não falou em terminar a relação, mas ele pressentiu que isso estava prestes a acontecer. Perderia Lúcia. Estava confuso, não sabia o que fazer. Realmente gostava demais de Lúcia - se não fosse casado era certo que a escolheria como esposa. Mas não iria largar a família, isso seria muito complicado e ele detesta complicações.
Sentiria falta dela, muita falta. Infelizmente, não podia fazer nada para evitar a perda. Tinha essa convicção. E se... não, não, melhor deixar essa idéia para lá.
- Querida, vamos jantar hoje naquele restaurante francês que inaugurou semana passada?
- Você quer? Vamos.
- Me disseram que lá tem...
- Já disse: se você quer, vamos.
- Está brava? Que foi que eu fiz?
- Nada, Antonio, você nunca faz nada. Vamos logo para essa bosta de restaurante. Não é o que você quer? Vamos.
- Então vamos.

Lúcia vai me deixar. Mas não posso fazer nada para evitar. Não queria. A não ser que eu... não, não dá. Não teria coragem.
- No que você está pensando, Antonio? Passou a droga do dia inteiro com a cabeça longe, sem me dar atenção!
- Ah, então é isso! Não se preocupe, querida. É que estou preocupado com uma reunião que terei amanhã à tarde. Vou ter que assinar um contrato, mas tenho certeza que terei prejuízo.
- Prejuízo? E porquê então vai assinar o contrato?
- Porque me comprometi. E você sabe, compromisso para mim é sagrado.
- Como você é burro, Antonio. Não se assume compromisso para ter prejuízo!
- Pois é, querida, pois é...

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Responsa


Tudo o que eu queria era não precisar de nada. Querer, só por querer; ter onde buscar de graça o que eu quiser. Não precisar acumular, não precisar pensar no dia seguinte, não precisar contar cédulas, não precisar precisar.
Liberdade custa muito caro, e para mantê-la é preciso submeter-se. Ou seja, ela simplesmente não existe no conceito amplo. Satisfaço-me, por falta de opção e pelo bem da minha sanidade mental, com o que consigo extrair dela aos pedaços, em miúdos.
Nem sei quando foi que perdi a ambição. Não lembro quando resolvi abrir mão das marcas e modismos, em troca de conforto puro e simples. Só não consegui me livrar do orgulho, nem sei como seria viver sem ele. Nunca tentei isso. E também cultivo uma certa vaidade que não é física, aparente.
Claro que queria ganhar na megasena. Para não precisar. Mas nem jogo. Não preciso ganhar na megasena, eu só quero. Que caia do céu, ou da porta traseira do carro-forte em alta velocidade. Daria todo o dinheiro para alguém administrar, enquanto eu ia simplesmente continuar a vida como a levo hoje. Só que sem precisar.
________________________________________
Isso tudo é fruto do fato de ter retornado hoje ao meu ex-trabalho. Resolvi permanecer por mais 30 dias, enquanto procuram um substituto. Não pelo ex-patrão, que fique bem claro. Mas pelos meus colegas e pelos projetos já iniciados, que eu gostaria de concluir ou ao menos deixar melhor encaminhados. Eu verdadeiramente não precisava conceder esses 30 dias. Mas me sinto com essa obrigação de fazê-lo.
Nem por isso me sinto melhor. Estar aqui me embrulha o estômago. Por sorte, ainda não encontrei com quem não quero. Mas será preciso.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Compromisso


Sou impulsiva.
Não adianta me cobrar racionalidade
Quando tudo o que quero
É dizer tudo o que quero.

O certo é o que eu acho que é certo,
E não o que você me diz ser.
Sou arrogante sim, e daí?
Isso não é da sua conta.

Esperança, essa eu nunca perco.
Mas nunca em você: sempre em mim.
Não temo as consequências dos meus próprios atos.
Não temo! Aprenda isso: não temo!

Nada do que você pensa me afeta.
Nada do que me diz, eu escuto.
Não enxergo com seus olhos,
Não preciso de você.

Somos seres distintos,
Eu, você, os outros, o mundo todo.
Sou impulsiva, seu racional!
E só sou feliz assim.

Não me venha com suas amarras,
Suas camisas-de-força. As renego!
Não tente me prender, você não é capaz.
Ao invés disso, tente se libertar.

Tente, ao menos uma vez,
Fazer explodir todo o seu ódio,
Todo o seu nojo, sua repulsa;
Tente ser livre, meu caro, tente.

Que as normas sejam peças de ficção,
Ame-se, crie suas próprias regras!
Mas não exija que eu as cumpra:
Eu sou assim, eu sou isso, e me gosto desse jeito.

Seja como for, seja feliz
E continue ao meu lado
Porque eu te amo,
Seu imbecil.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Eu despedi o meu patrão


"Eu despedi o meu patrão (...) ele roubava o que eu mais valia, e eu não gosto de ladrão".

É isso. Só estava há quatro meses no emprego, e nesse período eu pensei em me demitir pelo menos umas 100 vezes. Nunca tive paciência para suportar desaforos e desmandos, e sou arrogante demais para ter um patrão mais arrogante ainda. Não consigo suportar ser comandada por alguém que ostenta orgulho ao espalhar aos quatro ventos nunca ter lido um livro na vida, e não sentir falta de livros. Afinal, sou jornalista. É para mim humanamente impossível lidar com um patrão que não quer textos no jornal por afirmar que o povo não gosta de ler (se não gosta mesmo, pra que gastar dinheiro com jornal?). O pior é que estou falando de um administrador público.

O ex-patrão é daquele tipo que arrasa com a auto-estima de seus funcionários, deixando-os apáticos e descrentes de si mesmos. O problema é que comigo isso não funciona. Recebia um ataque, devolvia outro. Abusei da ironia "n" vezes ao desferir os tiros. Mas isso nem deu tanto prazer. Foi mais ou menos como contar uma piada para quem não entende: você tem que explicar cada ponto, e a piada, por melhor que seja, perde completamente a graça.

Acredito que o trabalho só faz sentido quando te traz prazer ou recompensa financeira. O meu não trazia nenhum dos dois. Poderia enrolar mais um tempo, pegando uma licença médica, por exemplo. Mas isso não combina comigo. Tenho essa mania de ser transparente, e falar o que penso assim, na bucha, sem meias palavras.

Se fosse pegar licença médica, pediria ao médico para anotar que eu estava com febre tifóide. Tifóide, patrão. Tifóide. Tifoida-se. Nem estaria mentindo, tenho mesmo essa doença crônica que me faz mandar tifoider-se qualquer um que me tira os restos mortais de paciência que tenho.

Pensando direitinho, a culpa disso é do Dimas. Foi ele quem atiçou despudoradamente a minha inveja ao dar a entender que teria um dia a mais de folga nesse feriadão, e que iria curtir na praia comendo lagosta a R$ 10. Foi demais pra mim. A inveja cresceu, cresceu, e resultou num acesso de tifóide.

Deu no que deu. Agora, Dimas, meu feriadão vai ser maior que o seu! hehehe.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Inconsciência


Estou no comecinho do livro "1984", de George Orwell. Um dos assuntos que trata é a manipulação da história: como um sistema absolutista cria, muda e impõe a história ao mundo, transformando homens em heróis, vilões ou nada, de acordo com a sua conveniência. Fatos ganham elogios e notoriedade, enquanto outros são simplesmente "vaporizados", para usar o termo do autor.
Ainda nesta semana li uma matéria da Carta Capital sobre a morte de Che Guevara. A história modificada ao sabor dos interesses até hoje incomoda. Sabe-se de muitas versões, mas quem saberá o que houve de verdade? A reportagem levanta a hipótese do assassinato ter sido determinado pela CIA. Por outro lado, documentos da época "revelam" que a panaquice foi um desvario do comando militar boliviano sem prévia consulta e com a desagradável e prevista consequência do nascimento de um mártir à morte de um homem. Fato concreto: Che morreu.
Já falei aqui, em outro texto, que na infância eu desconfiava de que tudo no mundo existia apenas para me enganar (claro que confesso meu egocentrismo, embora naquela época eu o praticasse com ingenuidade). Achava que a história não existia. Que meus bisavós eram lendas, e tudo o mais que remetesse ao passado. Só me conformei de que estava errada quando novos integrantes da família foram nascendo. A lógica era: os novatos também podiam pensar que eu era parte da mentira. Por uma questão de sobrevivência histórica, resolvi parar de pensar nisso tudo.
Quando eu estava quase curada (é que ainda estou saindo da infância, tenham calma), pego nesse livro, leio essa reportagem e fico ensimesmada. Já sei que meus bisavós não foram lendas, que existiram de fato. Mas não sei o quanto de verdade há no que me contaram sobre eles. Não sei o quanto de verdade eu repasso para meus sobrinhos. Fico imaginando quantas personagens foram criadas ao longo desses milênios de existência humana. E quantas teriam sido injustiçadas pela história?
Quando criança eu não acreditava em história. Era uma lógica torta, infantil. Mas não deixava de ter um fundo de razão.
Hi, Big Brother.