sábado, 29 de novembro de 2008

Esquina Paranóia Delirante


Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 14h.
Cinquenta funcionários públicos estaduais sentados na escadaria falam mal dos chefes, esculhambam o governador, trocam receitas culinárias, se dedicam a escrutinar a vida alheia, reclamam do sol forte, suspiram por causa do atraso.

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 14h30.
Cinquenta sindicalistas estão de pé, circulando entre grupos pequenos, distribuindo panfletos e jornais, rindo muito, falando alto, falando que tem pouca gente, falando que o evento é um sucesso, se fica no falatório ou vai ter andança, anunciando a agenda pagã do ato público logo mais à noite, quando conseguirem terminar aquilo ali (e vamos terminar logo, diz o consenso).

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 15h.
Centenas de funcionários públicos se misturam aos dirigentes sindicalistas, todos de pé, todos procurando uma sombra pra se proteger do sol tão forte que quebra a barreira da poluição paulistana. Escutam trechos do falatório, três ou quatro aplaudem quando é o seu presidente de sindicato quem fala, a conversa é diversa entre eles. Uns querem dar uma passadinha na feira hippie da praça, outros se preocupam porque deixaram o carro na zona azul e o cartão vai vencer, outros se gabam de ser inteligentes por terem vindo de metrô. Ainda tem gente distribuindo panfletos e jornais, o estoque parece ser ilimitado.
Tem um monte que segura faixa. Tudo quanto é faixa pede respeito, enquanto o segurador está com a mão por sobre os olhos protegendo-os do sol enquanto eles procuram um lugarzinho com sombra, alheio ao discurso que está sendo jogado às traças em cima de um caminhão panfletário.
Tem um monte que bate foto. Não sei onde vão parar essas fotos, nem sei porque se precisa de tantos fotógrafos num evento como esse. Quase tem mais fotógrafo que dirigente sindical, todos com cara séria, todos preocupados em pegar o melhor ângulo, alguns, mais despachados, de vez em quando conseguem flagrar alguma bunda bonita passando ao lado, com corpo e tudo. Sobe e desce o caminhão, vai à direita e à esquerda, fica no centro, se ajoelha, mas não reza: bate foto. Cara, é muita foto. Viva a máquina digital.
Na mesma praça, sem ser sindicalista nem servidor público nem fotógrafo, tem o pastor com seu auxiliar. Os dois chamam mais a atenção de seu público do que os dirigentes sindicais com seus mesmos discursos "improvisados" de sempre. O pastor berra e se faz ouvir. Consegue a atenção de quem tá só passando, não reclama do calor apesar do terno mal cortado e da gravata surrada. Não reclama do baixo salário e dá até para se pensar que sequer ganha algum. Não critica o governador porque o único que reconhece é o seu poderoso e supremo deus, a quem ninguém jamais conseguiu empulhar com alguma greve. Não reclama na verdade de nada, só quer aumentar o seu rebanho que nem seu é. O pastor.

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 16h.
Retorno ao evento sindicalista e quase me surpreendo ao verificar que as centenas que conversavam em pé se transformaram em dezenas miúdas com cara de "chega". Dos sindicalistas lá em cima só sobraram os fraquinhos, aqueles que dizem "tchau, galera" e "vamos nos unir contra essa política de arrocho salarial". Do resto, nem sinal. Os que estavam sentados na escadaria da Sé continuam miraculosamente lá, e eu fico pensando se na verdade não são apenas figuras integrantes da paisagem (e que eu confundi como funcionários públicos). Nenhum fotógrafo à vista. O pessoal da faixa é que está em plena atividade, retirando o precioso material que será desenrolado no próximo ato numa sexta-feira qualquer talvez novamente ensolarada e com os mesmos figurantes.
Pego o metrô e venho embora pra casa. Fui esperta, fui de metrô ao evento.
E nem sou funcionária pública. Nem sindicalista. Nem fotógrafa. Nem crente.

Um comentário:

Verbo Feminino disse...

Nem sindicalista, nem fotógrafa, nem crente.

Mas ótima cronista!!!

Abraço,
Luciana G.