Foi assim: de uma hora para outra perdeu a capacidade de enxergar. Não ficou cego; só deixara de enxergar o mundo como estava acostumado. Não se trata de romantismo, de amadurecimento, de secura. Talvez de costume. A questão é: como cronista, precisava continuar a se surpreender com as pequenas (e grandes) coisas da vida. Precisava voltar a lembrar aos seus leitores os detalhes que compõem o dia-a-dia e que a maioria já nem percebe. Ele era diferente, e era necessário conti8nuar a ser assim. Eram os detalhes que pagavam suas contas. Os detalhes e sua capacidade não só de enxergá-los como apresentá-los com lirismo, com humor, ironia, picardia, indignação e revolta. Ou como só mais um elemento, sem juízo de valor aplicado.
Estava tão cego que nem percebeu a dificuldade de enxergar. Quando ainda estava com o olhar afiado escreveu muitas crônicas excedentes que, ou por tema longevo ou por exagerada crítica à qualidade do texto, eram arquivadas em pasta à parte. Foi a sorte.
Era sábado e, como de praxe, foi ao mercado público se encharcar das conversas alheias, dos gestos ridículos ou ridicularizáveis, dos costumes explicitados em roupas, cores, cabelos, gírias, música. Às vezes nem chegava no mercado: no caminho até lá, uns dois quilômetros que percorria a pé, já se fartava de sua matéria-prima. Era uma anciã que caminhava de braços dados com a neta, um pedinte com ares de poeta, um jovem que fazia de seu carro um trio elétrico, um cartaz pregado no poste. A vida é riquíussima de detalhes.
O cronista nunca teve que se preocupar muito quanto à procura de seus temas. Até esse sábado - que, aliás, lhe passou despercebido.
Saiu de seu apartamento do bairro do Espinheiro (qual será a origem do nome do bairro?) em direção ao Mercado da Boa Vista. Deixou dormindo a esposa e as duas filhas. No portão do prédio não viu o porteiro e deixou de criar na mente as possibilidades daquela ausência. Estranhou, mas seguiu seu rumo dizendo a si mesmo para, na volta, comentar o episódio com o síndico em tom de reclamação.
A dificuldade de atravessar a movimentada via na frente do prédio também não lhe inspirou. Poderia ter falado sobre a selvageria do trânsito, acidentes, atropelamentos, riscos, motivos urgentes e motivos fúteis para a velocidade, o golpe do seguro, o poder das rodas, a superioridade do motorista diante do pedestre, a história da moça que se atira na frente do ônibus por mal de amor. Duas faixas, mão dupla, zilhões de histórias potenciais. Mas não para o pobre e cego cronista.
Resolve seguir o trajeto pela avenida João de Barros. Pela primeira vez para e pensa que tem que prestar atenção à sua volta. Para um olhar atento, até o não-acontecer é fato a se destacar. Olha a babá negra e linda, e tão séria quanto negra e linda. Empurra um carrinho de bebê, mas tem cara de poucos amigos. "É uma possibilidade", anima-se. Então começa a montar sua crônica, enquanto os pés produzem os passos. "A mão de unhas vermelhas contrastava com o tecido azul muito escuro que servia de berço ambulante para o filho do patrão. Percebia-se..." "Unhas vermelhas, carrinho azul, filho do patrão? Eca! O editor vai perguntar em que estribaria eu fui alfabetizado. Lixo". A auto-crítica indicava o que até a mecânica-crítica poderia ter dito: um péssimo começo para qualquer coisa, ainda mais se essa coisa qualquer é um texto com obrigação de agradar aos outros.
Quatro caras passam de bicicleta sem que o cronista note. "Pensando no parco, mas necessário salário, a magnífica babá empurra o carrinho com uma evidente mistura de mau humor e resignação". Uma garota aparentando não mais que 15 anos dorme sob a marquise. Carrega um ser no ventre e um tubo de cola na mão. O cronista quase tropeça nas pernas magras e sujas, espalhadas na calçada. Ele chega a desviar seu olhar para aquele ser humano de óbvio mas não importante sexo feminino. Continua obcecado com a imagem da babá, que há muito já saiu de seu campo de visão.
"Era linda. Corpo de generosas curvas, olhar negro carregado de mistério, expressão dura de quem pretende avisar ao mundo (e aos homens): comigo não, violão!" "Comigo não, violão? Diabos, de onde tirei isso? Cadê minha criatividade, cadê meu estilo, cadê minha verve? O que está acontecendo? Que pobreza de pensamento..." - um cão atravessa a movimentada rua como quem passeia pelo seu território, em total segurança - "Vamos lá: avisar ao mundo: sou moça séria!" "Sou moça séria... hum... ah, vou deixar assim por enquanto. O sentido é esse. Depois encontro algo melhor".
O cronista segue elaborando mentalmente seu texto e ignorando tudo ao redor. Não vê a mulher que agarra a bolsa como quem quer salvar do ladrão seu único tesouro; as duas colegiais que passam gargalhando em meio à narrativa de uma história 'irada' que 'rolou' com 'a galera do P.O.' na rave de ontem. Deviam ter a mesma idade da grávida viciada em cola que ficara estendida na calçada há um quilômetro atrás. O coitado do cronista mal se deu conta que deixara a João (de barro) e chegara ao Príncipe, a continuidade de uma mesma rua, como se de um destino de contos de fada. Passava nesse instante pelo muro do tradicionalíssimo Colégio Nóbrega, que recentemente fechou suas portas por falta de aluno. Uma falência não só da escola, mas sobretudo da tradição católica de ensino ou do antigo valor dado ao centro da cidade. O cara tem os olhos fechados para tudo isso, e toda a disposição voltada para a babá, mesmo avaliando o tema fraco e o enredo pior ainda. "Não está acontecendo nada na cidade. É o diabo!".
A essa altura, a magnífica negra de unhas vermelhas já estava revoltada com o bebê. Lembrou-se do aborto que fizera um ano antes. "Não pude cuidar do meu filho e hoje vivo cuidando do filho dos outros. A vida prega cada peça na gente...", pensava a personagem.
Também a essa altura, já perto do seu pretenso destino, o cronista, banhado de suor e já ciente das evidências de que esquecera de usar desodorante, assumiu somente para si que aquela história da babá não estava com nada, que não ia render, que não passava de desespero de causa querer transformar algo assim tão banal em algo delicado, ou triste, ou irônico, ou dramático. Uma babá passeando com um bebê filho do patrão é... só uma babá passeando com um bebê filho do patrão.
Prosseguiu, desanimado, até o mercado. Passou lá mais de um ahora vendo, observando, conversando. "Nada de bom, nada de diferente, nada de novo, nada de original. Até no mercado tem rotina", concluiu, sem sequer perceber o gancho para crônica que ele mesmo havia descoberto (até no mercado tem rotina). Desistiu. "Na volta encontro algo. Ô cidadezinha merda, onde nada acontece". Foi até a Conde da Boa Vista se desviando dos pedintes, dos camelôs, dos piratas, dos carrinhos de lanche. Tomou o ônibus e esqueceu de pegar o troco com o cobrador - que não fez nenhum gesto para lembrar o esquecido passageiro. Quando chegou ao prédio, o porteiro estava lá no posto de serviço. O elevador quebrou pela segunda vez na semana e ele preferiu subir até o quinto andar pela escada. O elevador do serviço fedia a mijo de cachorro - o dono do apartamento de cobertura cria um labrador que adora mijar no carpete do elevador. Isso porque no prédio há proibição normativa de criar animais domésticos.
Chega ao apartamento. A família ainda dorme. Liga o computador e acessa a pasta "Crônicas frias". Escolhe uma aleatoriamente e manda para o e-mail do editor. "Pronto, hoje me safei. Daqui pra mais tarde a inspiração volta, ou vai acontecer alguma coisa nessa cidade.
Isso aconteceu há quarenta dias. Hoje o cronista está desesperado. Só restam dois textos ainda não publicados. Está raspando o tacho da pasta "Crônicas frias".
"Quarenta dias. E nada acontece nessa porra dessa cidade!".