Fosse apenas um safado, seria até bom. Não, não dava para estigmatizá-lo com adjetivos simples. Havia sempre um "mas", um "embora" para definí-lo. Era ainda vulgar, só que não de um jeito simples, comum: a sua vulgaridade era única, apresentada em palavras e mascarada em entonação e fim. Tipo da figura que se ama ou se odeia, sem meios termos. Tipo de pessoa a quem não se faz pergunta direta, objetiva, se há algum receio de resposta franca. Capaz de ferir rindo ou aos prantos - e nem sempre as reações eram obviamente previsíveis. Sobretudo, um homem simples e muito inteligente. Um perigo.
Era um bom inimigo. Jamais agia pelas costas, jamais traiu a ninguém, principalmente a si. Odiava profundamente. Era um ódio orgânico, que nascia das entranhas, misturava-se ao sangue, percorria todas as veias, envermelhava o rosto, escapava na forma de suor e febre. Febre de ódio. Não era polido o suficiente para esconder suas emoções nem escolher reações sutis. Não raro, agia com violência. Nem sempre com justiça. Um animal em tudo.
Amava despudoradamente. Amava primeiro, julgava depois, e sempre julgava. Presenteava as pessoas queridas com um olhar infantil e cúmplice mesmo quando discordante: aos amigos, tudo. A mão pesada, esquecida da força, afagava sempre que necessário. Os musculosos braços desmanchavam-se em abraços aconchegantes, paternais. Tinha uma idéia pronta para qualquer ocasião, fosse qual fosse o assunto, especializado ou não; era homem de uma lógica incomum e rapidamente formulada. Silêncio não era com ele. Nem resignação.
Mamífero amante dos prazeres, não se dava ao direito de se negar. Havia abusos, havia exageros, por vezes chocava. Não era feito de celulose, seu manual de conduta nunca fora escrito, ordenar-se era seu direito privativo, só seu. Desgastou-se cedo, optou pela intensidade - ou talvez não lhe tenha surgido uma outra opção razoável.
O certo é que soube "ser", a despeito de tudo, para o bem e para o mal. Indecifrável, intraduzível, singular. Como essa sua ausência que sinto.
Um comentário:
Eita, Cláudia!
Gosta da forma como você constrói os textos e no final muda a nossa perspectiva do texto. A frase "Como essa ausência que sinto" leva o leitor a uma visão complementar do que foi dito. Lembrou-me o fantástico poema Trapézio de Josias, quando ele diz no final "Na platéia, eu, com a alma contida,percebi no espetáculo minha vida".
Beleza pura!
Dims
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