Ensaiava para o baile enquanto sua mãe matava um frango no terreiro. Dançava ao som mudo de um Mozart surdo, cega e transtornada pela paixão que viria a sentir quando finalmente encontrasse um rapaz, o seu rapaz, e seria naquela noite. Sabia disso, com a mesma certeza que tinha de que a sua cidade compreendia o mundo inteirinho - sua cidade era o mundo, e nada mais restava. Tinha certeza disso, sabia disso.
De repente estava num imenso salão chiquérrimo, lindo, cheio de pessoas bonitas, bem vestidas e arrumadas, cheio de moças (como ela) cheias de certeza de encontrar o seu rapaz e naquela noite e de serem felizes para sempre hoje. O frango jazia morto no terreiro molhado pelo suor derramado da face de sua mãe, a pobrezinha da sua mãe. Seria servido ao molho pardo.
A mãe pede para que ela lhe traga a chaleira quente que apita do fogão de lenha anunciando que sim, a água estava a ponto de ser utilizada. Ela escuta - à mãe e ao grito da água fervente - mas aquilo faz parte de uma realidade paralela que não lhe interessa. Então os berros de sua mãe misturam-se à música imaginária e ela tropeça no pé do cavalheiro, e erra e cora, e pede desculpas de cabeça baixa piscando os olhinhos com o charme que uma tia sua ensinara a fazer. Corre para o espelho da sala e se certifica de que piscou certinho mesmo, a ponto de parecer meiga ao seu rapaz. Sim, está tudo certo. "Boa menina", diz para si mesma. E volta aos braços de seu para sempre amado.
O dia corre sem pressa, a manhã está lenta, e ela está bailando há não mais que dez minutos. Rodopia segurando com as pontas dos dedos da mão direita a longa saia que será vestida somente à noite, enquanto a sutil mão esquerda se apóia delicadamente no ombro de seu par. Olhos semicerrados, sorriso estudado nos lábios, só a ponta dos pés tocando o chão: é assim que treina a moça; "é assim que deve ser", pensa, e está razoavelmente certa. Os moços gostam da delicadeza feminina, gosta de serem os machos a protegerem suas fêmeas indefesas. Gostam de serem tocados com delicadeza por uma jovem e bela dama com quem se casarão e terão muitos filhos. Foi assim que ensinaram a ela. E ela dança e dança.
O frango começa a ser depenado. A mãe cumpre essa tarefa do mesmo jeito que varre o terreiro todas as manhãs, ou que busca a água na cacimba várias vezes ao dia. É uma tarefa a mais, e o suor pinga naquela manhã quente, e nada mais há de se falar sobre isso. O frango vai ficar gostoso para o almoço, a mãe cozinha bem. Quase tão bem quanto a filha baila, ou quanto ela pensa que baila tão bem. Nunca pisou no pé de um parceiro, mesmo a despeito de nunca ter tido um parceiro real - o real, para ela, não passa daquele lindo salão cheio de seus rapazes seus, só seus, e dentre os quais ela irá escolher o afortunado, um dia. Ao seu gosto. E é hoje.
Está flutuando junto de seu sempre amado quando sente um puxão. Algo a está trazendo para a outra realidade, aquela paralela, a insignificante. É uma mão. É a mãe. A mesma que tava matando um frango, a mão suja da mãe. Toca seus cabelos, mas não sabe ser gentil como ela é com o seu príncipe. A mãe com a mão é bruta, e arranca-lhe um tufo de cabelos. O seu amado se assusta e sai correndo, deixando-a só com o frango morto impregnado ali naquela mão. Ela ainda lança um último olhar para o seu rapaz que já está muito, muito longe. Inalcançável. Já era.
E aquela mãe a guia para um buraco negro, um espaço nebuloso entre a sua realidade cor-de-rosa e a sua outra realidade cor-de-sangue-de-frango. Ainda não entende bem o que está acontecendo; pensa se seu rapaz verdadeiro fugiria como aquele traste fugiu diante do perigo da mão da mãe. E fica pensando nisso direto, enquanto suas mãos são mergulhadas com rudeza nas entranhas do frango. A música ainda soa em seus ouvidos, mas está confusa. A voz da mãe é mais alta, mais forte: "limpa bem esse frango, viu? Senão dou-lhe outra surra". Não, surra não. Tudo menos isso. Surra não. Odeia a mãe, e odeia ainda mais a mão da mãe, essa mão que a tira de sua vida real e lhe traz para aquela outra vida desgraçada, infeliz e sem graça. A vida de sua mãe. Não a sua: a de sua mãe.
A música pára de soar.
Amanhã, quem sabe.
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