terça-feira, 20 de novembro de 2007

O Noel da Riachuelo


Somava os centavos, um a um,
pensando no orgulho degredado
perdido nalguma avenida
que nem a ele importava qual fosse.

Lembrar do que fora já lhe era inútil,
senão impossível.
Pensar no que se tornara doía.
Sozinho vagava, é tudo.

Ora alucinado, ora envergonhado
embrulhara a memória e se
dedicara a sobreviver:
o animal há de saciar o corpo.

Vestido de jornal, nas madrugadas,
a consciência cobrava seu preço.
"Para quê vives?
Anda, responde, diz: Para quê?"

Resposta ele nunca tinha;
desconfiava mesmo que não houvesse.
"Cala-te. Não vês que te troco
por um prato de comida azeda?"

Trocaria a consciência como trocara os livros,
os últimos bens a lhe escorrerem das mãos.
Primeiro havia perdido o amor, o próprio.
Ou teria sido, anteriormente, a sanidade?

Aos poucos, e dolorosamente, se adapta.
Um moleque da rua lhe ensina:
"teu mal é que tu pensa. Cheira aqui que passa".
Mais um degrau para o fundo. Não faz diferença.

A fome some, a consciência é calada,
a vida se abranda. Mãos estranhas acariciam.
Quando tudo passar, a miséria estará de volta.
Não tem importância. Não faz diferença.


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Em Recife, morei em um prédio na Rua do Riachuelo por um bom par de anos. Na vizinhança, muitos moleques de rua se abrigavam embaixo das marquises, e lá faziam tudo o que a vida lhes permitia, embora a lei não. Um dia, apareceu um novo "morador", a quem chamei de "papai noel". Era estranho, tinha cara de ser um erudito. Estava sempre com uma caixa, repleta de livros. Sempre estava lendo algum. Não chegava a ser gordo, mas estava um pouco acima do peso, tinha uma longa e cuidada barba branca. E os pés, então? O solado dos pés era absolutamente rosa, uma coisa impressionante! Sempre que passava por ele, minha atenção ia primeiro para aquela barba impecável, depois para os livros, e finamente para aqueles pés limpíssimos e bem cuidados.
Pensei em muitas prováveis histórias que poderiam ser a do papai noel. Podia ser algum amante dos livros que resolveu "se libertar do sistema". Podia ter sido traído pela mulher adorada, e se entregou ao mundo. Podia ter surtado. Podia ter perdido tudo o que tinha num carteado. Sei lá. O cara mantinha a dignidade, e a vizinhança reconhecia: sempre que vinha para minha casa no horário de almoço, lá estava ele sentado em cima de um papelão, livros ao lado, quentinha na mão (marmita mesmo!), comendo de garfo e faca. Às vezes tinha até suco para acompanhar.
Quando voltava da universidade, tarde da noite, ele estava deitado, cabeça apoiada nos livros, com um cobertor grosso forrando o chão e outro por cima de seu corpo. Nada de moleque por perto.
Assim foi, foi... até que um dia eu passei e notei a barba suja, degrenhada. Olhei a caixa e nada - sem sinal de livro por perto. Pensando no pior, encarei meus temores e olhei com atenção para o pé: estava podre de sujo. Papai noel virara, enfim, um pedinte sem tirar nem pôr.
Passou-se mais um tempo, eu observando com atenção as amizades que o outrora bom velhinho fazia. Um monte de moleque cheira-cola o adotara como padrinho, ou coisa que o valha. Certa noite, voltado tarde para casa, vi algo que me chocou: papai noel tava cheirando cola, junto com uns oito moleques, entre eles duas meninas tão pequenas que nem peito tinham.
Desisti. Papai noel estava perdido. Aliás, nem era mais papai noel. A barba já tinha deixado de ser branca e estava amarelada.
Noite de entrega do Prêmio Cristina Tavares de Jornalismo. Noite de rever amigos, falar mal de inimigos, descobrir "por onde anda" outros. Depois de uma esticadinha numa pizzaria, já de madrugada, vou para casa. Passo, de carro, pelo "bom velhinho". A putaria estava generalizada: o ex-papai noel tava numa orgia com os meninos e as meninas de rua. Nem se importavam com quem passava, nada. Não acreditei. Fiz a volta com o carro e passei de novo pelo local. É, era aquilo mesmo que eu tinha visto da outra vez.
Desencantada, minhas versões de prováveis histórias daquela figura mudaram muito. Por fim, aprendi a passar por ele sem dirigir o olhar sequenciamente para a barba (imunda), os livros (desaparecidos) e o solado do pé (preto). Semanas depois, ele e seus amigos foram jogados dentro de dois camburões, e desde então nunca mais os vi.
Conclusão: papai noel não existe.

Um comentário:

Canto da Boca disse...

Será só nos encartes dos jornais que ele (des)vestia?
Fiquei reflexiva, acho que vou caminhar a esmo pela nova cidade que me adotou. O tom cinza-escuro do céu, o dia ora chuvoso, ora nao, e as predominancias das cores ocre e terracota de Tárraco estao propicias para a melancolia que se instalou em minh'alma, após lê-la, mana.