quinta-feira, 6 de setembro de 2007

A máscara


Estava entediada pelo trabalho maçante de nove horas diárias a que estava obrigada a suportar. Não contribuía em nada para o seu desenvolvimento profissional, não acrescentava nada, não trazia qualquer novo desafio, pequeno que fosse. Mas era o ganha-pão, o que a sustentava na vida. O dinheiro era pouco, mas suficiente para sobreviver. Sobreviver, no entanto, era pouco para ela.
Nunca planejara ser rica. Como que numa vidência natural, sabia que jamais teria muito dinheiro. A certeza era a mesma que a fazia saber que nunca passaria fome. Teria dias em que não poderia comer um pastel no meio da rua, mas sempre haveria algo na geladeira ou no armário de sua cozinha. Não se podia dizer que tinha ambições em relação a dinheiro, mas era inegável sua sede de vida plena. E vida plena, para ela, não condiz com um trabalho diário de nove horas.
Inconstante como era, muitas vezes temia a si mesma. Ao tomar consciência de seu temperamento passou a não mais planejar o futuro, quase nada além de 24 horas. Planos para uma semana então era algo sufocante, angustiante, quase intolerável. Futuro, para ela, é a última letra de uma palavra que começa a ser escrita - transponível em menos de um segundo. Depois é presente e aí já foi, mudou, deixou de ser.
Tanta irriquietude não combina com o casamento que leva, feliz, por nove anos, muito menos com o emprego medíocre que na verdade, se largado, não faria a menor falta no orçamento doméstico. O salário do marido é mais que suficiente para os dois. Não puderam ter filhos e ela se acostumou com a idéia após um período natural de tentativas vãs e melancolia. Hoje sabe que o que mais a frustrou nisso é que estava impossibilitada de algo. Não podia engravidar. Nunca fez questão de ter filhos enquanto pensava que os poderia ter quando desejasse. Mas quando o resultado dos exames saiu e o médico anunciou o diagnóstico, doeu-se. Coisa do passado.
Não conseguia mesmo era se conformar com sua conformidade em relação ao trabalho imbecil que tinha. Iniciou uma investigação minuciosa de seus sentimentos, de seu modo de ver a vida, de suas expectativas. Queria descobrir o porquê. Tudo tinha um porquê, acreditava. Passou dias e dias dispersa de tudo que não fosse sua lupa psicológica, ao ponto de ser chamada atenção não apenas no trabalho como principalmente dentro de casa. Seu companheiro não conseguia participar daquela investigação solitária, sequer sonhava com toda a ebulição interna que se passava com sua mulher. E achou ruim, estranho, sentiu-se abandonado. Regurgitou suas impressões de maneira suave e não obteve o retorno desejado; estava prestes a fazê-lode forma violenta, aos berros que fosse, mas exigiria de qualquer maneira o seu direito de participar da vida daquela mulher que ele amava tanto, mesmo depois de quase 11 anos de convivência.
Ela sequer notou a aflição dele. Era feliz ao lado dele, qualquer insinuação contrária a isso seria mentirosa. Entretanto, nunca abrira mão de seus momentos altruístas, e estava passando por um destes agora. Não há espaço para dois.
Aquilo virou obstinação, quase. Por quê? O que a impede de jogar fora o que não está lhe fazendo bem? Nada. Não, tem alguma coisa escondida aí.
Estava num jantar com amigos, sábado à noite, programinha moroso e agradável. No meio de uma conversa banal, uma amiga soltou a preciosa palavra: MÁSCARA. Era isso! Ela não prestou atenção no restante da conversa, não lembra de sua despedida, nada. Não teve sono. Não abriu a boca. A mente fervilhava. Descobrira a verdade, seu santo graal.
Era feliz. Tinha o suficiente para ser feliz. Não lhe sobrava muito nada, mas tudo estava na medida mínima exigida. Não podia reclamar de nada. E o problema estava aí: NÃO PODIA. Ela tinha que poder. Sempre, tudo. Não podia não poder. O trabalho. A mediocridade do emprego. Era isso: do trabalho podia reclamar, todos entendiam, uns porque acreditam que o trabalho é essencial na vida, outros porque acham que dinheiro a menos sempre faz falta. Ou simplesmente porque todo mundo reclama do trabalho. Se todo mundo pode, ela também pode.
Passou o domingo cismada. O que fazer, diante da descoberta? Sentiu-se mal, depois sentiu-se liberta de alguma forma. Passou o dia alternando o humor. Não conversou sobre o assunto com ninguém.
Chegou a segunda-feira. Foi ao trabalho pontualmente, como sempre. A primeira coisa que olhou foi a mesa de uma colega, repleta de pastas e papéis desarrumados, uma imagem de caos que ela sempre odiou. E reclamou. Da colega, da bagunça, do excesso de trabalho, do salário ruim... Reclamou, reclamou e reclamou. E desde esse dia, um bom observador poderia perceber o prazer dessa mulher a cada reclamação feita relativa ao trabalho.
Ela podia reclamar. Ao menos do trabalho.

Um comentário:

Canto da Boca disse...

O caso é que às vezes, reclamar, é pura máscara.
Até parece que ela trabalha no que não gosta.
;)